Camilo Castelo Branco - espírito.




Mas uma consequência da qual o suicida não pode escapar, é o desapontamento”. Questão 957 de O Livro dos Espíritos.


Muito tempo depois, mais de 20 anos decorridos, solicitado a dizer sobre o seu suicídio, eis o que o espírito de Camilo Castelo Branco, escritor português, relatou:

“Equivale a pedirem-me sinistra sinfonia para a ópera do Horrível.
Não sei dizer quanto é preciso; e tudo que disser não será, por assaz deficiente, a sombra de verdade necessária. Mas não recuso o meu contingente, nem quero perder a ocasião, que me oferecem, de mais uma vez bradar aos incautos que se defendam de cair no abismo em que me precipitei, em aziaga hora.
Supõe-se aí que o suicídio é a morte.
Alguns creem que na devolução das carnes verminadas à podridão, está a extinção da vida e do sofrimento.
Para esses é a libertação, a quebra da grilheta chumbada ao artelho de forçado do martírio; como para outros é só remédio pronto a embaraços inextricáveis de momento.
Há quem o creia cômodo fecho a uma vida de angústias; como há quem nele veja fácil alçapão por onde se pode fugir às chicotadas do Destino.
Para uns é cura radical de dores; para outros astuciosa maneira de fugir à sorte adversa.
Alguns o têm como remate forçado e benemérito de desilusões; outros o buscam como portaria franca para a região da Esperança.
Aos descrentes é finalização lógica para dificuldades e desgostos; aos infelizes recurso último do desespero acovardado.
Uns creem conquistar com ele a eterna paz do Nada: o sono tranquilo de que não se acorda mais; outros imaginam-no alavanca irresistível para forçar a porta do Esquecimento.
Querem uns, com ele, esmagar remorsos de justiceiro pungir; querem outros, com ele, escalar mais rapidamente o Céu.
E a todos enganam as tredas e alucinadoras miragens da Tentação.
Não é a morte; não há libertação; não constitui remédio.
Não extingue angústias, nem abre caminho à fuga redentora das açoitadas do destino vingador.
Não sara dores, nem acaudilha deserções.
Não põe fim às desilusões da alma, nem encaminha visionários às sonhadas bandas da Esperança.
Não dá, para os descrentes, razão à sua estultícia; nem aos infelizes consolação permeadora do seu desespero pusilânime.
Não conduz o mísero à suprema paz do Nada, nem o acalenta no eterno sono inacordável.
Não abre aos tristes a letárgica região do Olvido; não dá aos remorseadores  mordaça para calar a grita da consciência; nem ajuda aos crentes a tomar de assalto o Céu.
Para todos o suicídio é o desengano.
Simulando defender do infortúnio, impele violentamente ao salto-mortal para o Horror.
Não sei de nada que lhe seja comparável.
Nem a blasfêmia, que eu suponho a suprema ofensa à Razão; nem o fratricídio, que eu acredito a suprema ofensa à Humanidade; nem o matricídio, que eu presumo a suprema ofensa à Natureza.
O suicídio é a suprema ofensa a Deus.
Nele, as dores redobram de intensidade; a alma impregna-se de desesperos, que parecem infindáveis no tempo e na angústia.
Constitui a cristalização da Dor; a aflição da ansiedade que nada satisfaz; a dentada triturante e perene do Remorso.
Eu fui suicida. Querendo fugir à cegueira dos olhos, fui mergulhar-me na cegueira da alma.
Pensando furtar-me à negrura que cobria o meu viver, fui viver na treva onde os suicidas curtem raivas, sem remorso; e blasfemam quando suplicam.
Fui viver na pávida região onde os réprobos se mordem e agatanham; onde gargalham, de olhares em fogo e rangendo os dentes, os furiosos com juízo.
Aonde o suicídio arroja os seus mártires, num repelão brutal de louco, não penetra a Luz de Deus, nem a carícia da Esperança.
Lá, ruge-se, geme-se, chora-se, soluça-se, ulula-se, blasfema-se, pragueja-se e maldiz-se. Não existe paz; não se sabe, nem se pode orar.
É a caverna do Sofrimento, de que Dante só vislumbrou o portal.
Sei que rábicas convulsões lá me sacudiram; que lágrimas ferventes queimaram meus olhos cegos; mas não adrega dizê-las.
As dores descomunais não se descrevem. Sentem-se, no seu ecúleo titânico, mas não se definem. Entram pelo infinito; são o inenarrável; são o incompreensível.
Quando o suicida supõe trancar, com a morte, a porta da Agonia, abre o ciclo infernal do Desespero.
Matando-se, não aniquila a vida; destrói, só num ato de inepta rebeldia, o meio eficaz e providencial do seu progresso; e recua, voluntariamente, a hora desejada da sua felicidade.
A vida, além do suicídio, pertence à fase humana que os homens da Terra não conhecem, para que não têm ideias apropriadas, e a que a necessidade não criou ainda palavras representativas. De umas e outras, todas as que aí mais dolorida, mais trágica e mais sugestivamente pintem o aspecto do Horrível, não dão a impressão esfumada dos tormentos que o suicida entra a curtir, quando, por ingênua ou velhaca presunção, supõe conquistar, por uma violência da sua vontade, o termo do seu sofrer.
Isto é assim. É bom? É mau? É assim. É como é, e, como é, temos de aceitá-lo.
É possível que por aí haja quem fizesse coisa mais de perfeição; mas Deus esqueceu-se, lamentavelmente, de os consultar antes de completar a sua obra.
Foi uma falta grave; mas já vem tarde a grita indignada dos mestres desse mundo, para remediá-la.
Ponham de lado prosápias de emendar o que está feito.
Guardem as sabedorias, que podem melhor servir para adubar manhas e poucas-vergonhas nos conclaves palreiros da asnice em que aí pontificam.
Conjuro os que me lerem a que me creiam sem experimentar.
O desastre será irremediável, se não o fizerem.
Aceitem, aceitem o fato tal ele é.
Aceitem a vida como a puderem fazer. Corrijam-na, corrigindo-se. Amoldem-se às situações, ainda as mais desesperadoras.
A tudo mais Deus provê de remédio; mas Ele é que é o juiz da oportunidade de aplicá-lo.
Aceitem as dores, a cegueira, as deformações, as aberrações, o desespero, as perseguições, a desgraça, a fome, a desonra, a degradação, a ignomínia, a lama, tudo, tudo que de mau, de injusto, ou de rastejante em desprezo a Terra lhes possa dar, que são ainda coisas excelentes em desiludida comparação ao que de melhor possam chegar, pelo caminho do suicídio.”


Fonte: Livro O Martírio dos Suicidas - Almerindo Martins de Castro

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